sexta-feira, 8 de maio de 2009

Procura-se um querubim...

Já tive a oportunidade de postar esse texto em outros espaços. A quem já viu, pode ler novamente, eu deixo, rs
Quem ainda não, convido a ler agora...
Essa história é sobre quatro jovens numa noite de sábado na cidade de Santos em mil novecentos e oitenta.


Noite especial, onde o acontecimento mais importante era o Baile do Hawaii no hoje extinto Caiçara Clube de Santos.
Estávamos todas, a Shirley, a Márcia, a Cely (minha irmã) e eu (Dulceny), “mais duras que pão amanhecido”. Saímos as quatro a pé do apartamento no bairro Encruzilhada (bastante sugestivo) e fomos até uma pizzaria entre a Avenida Ana Costa e o Canal Dois, na Avenida da Praia. Minha irmã e a Márcia iam encontrar os “paqueras” delas. Shirley e eu sobramos, mas...
Chegando lá nos sentamos a uma mesa e pedimos um refrigerante cada uma e só. Era o que dava para comprar. E jogue conversa fora esperando as “noivas”, “ops”, os moços. Tomando refrigerante às gotas fazendo o tipo “não estou com tanta sede assim”, mas era para não ter que pedir outro se o garçom invocasse:
-Como é que é, vai consumir ou não?...
Enfim eles chegaram, já vestidos a caráter para o baile.
Conversaram com as duas e foram embora (pagar para elas; nem pensar; era uma pequena fortuna). Desconsoladíssimas continuamos ali e o “povo” passando todo arrumado em direção ao clube. Num dado momento, apareceu um garoto vendendo amendoim torrado.
-Vai amendoim aí, moça?
-Não obrigada. Hoje a gente não quer (ai... que fome).
Acho que ele percebeu a nossa “cara de fome” e deixou dois amendoins sobre a mesa (era em casca). Pedimos para ele deixar um para cada uma, mas ele não quis. Então, dividimos irmanamente dois amendoins entre as quatro.
Passados uns dez minutos, ele voltou e jogou uma caneca inteira de amendoim na mesa. Nós pegávamos os amendoins e tentávamos devolver a ele dizendo:
-Leva isso embora menino!
-A gente não tem dinheiro pra pagar não!
-Olha; eu como tudo e não pago, “ta”?
-Blá, blá...
O menino disse que o amendoim já estava pago.
-Pago?
-E quem pagou?
-Foram aqueles moços que estão ali em pé.
Acenos...
-Oi...
-Oi...
Apresentações feitas. Eles se sentaram conosco à mesa e ficamos conversando. Vieram comes e mais bebes e tal. (Maravilha! Uau!)
O entra e sai de gente “à la Hawaii” intrigou-os e eles quiseram saber o por que das roupas.
Explicamos sobre o baile e então um deles olhou para a Márcia e fez o convite:
-Vamos ao baile?
Ela arregalou os olhos e arrematou na mais pura incredulidade:
-Só se vocês levarem as quatro (humilde Márcia, rsrs)!
- “Tá” bom.
Caímos na gargalhada!
-Vocês vão pagar para todas nós?
-Vamos.
-Só pode ser brincadeira...
Esse baile na época era o evento máximo da High Society paulista, os artistas da televisão compareciam em peso ao evento. As entradas custavam o olho da cara. Creio que fazendo uma grosseira comparação, uns mil reais para as mulheres e uns mil e quinhentos para os homens.
Só podia ser piada!
Eles insistiram, pagaram a conta, inclusive os “refrigerantes elásticos”, chamaram um táxi e nos levaram em casa para nos arrumarmos, o que eles também iriam fazer. Marcamos com eles às onze horas na porta do prédio e a senha para descermos era o grito deles lá fora:
-Hawaii, vamos nós! (Morávamos no terceiro andar).
Bem, foi uma tremenda farra, a Márcia foi buscar a canga de praia e a mãe dela, a Heidi, emprestou uma pra Shirley, uma vizinha trouxe mais duas, uma pra Cely e outra pra mim. As flores artificiais dos vasos foram parar nos cabelos e, olhem só o detalhe, nas sandálias havaianas; pra disfarçar a “pobreza”...
E as horas passavam e os “caras” nada!
Sentamos já desanimadas da vida. Uma falava:
-Ah! Pelo menos valeu a farra de se arrumar!
-Valeu uma ova! Se um dia eu encontrar esses caras, eu quebro os dois (adivinhem quem disse isso, dou um doce).
E por aí vão os comentários...
A essa altura, meu pai, muito sarrista, sentado ao sofá e de braços cruzados, olhou o relógio e a nossa grande decepção e mandou:
-Cais, cais, cais (rindo), já são onze e quarenta e cinco. Daqui a pouco eles passam e gritam lá de fora:
-Hawaii... Vão dormir!!!
Foi só risada!
Quase meia-noite. Tocam a buzina lá fora. Meu pai não deixou que descêssemos. Militar que era, disse:
-Eu vou ver quem são esses que vão levar vocês para o baile e ter uma conversinha com eles.
-Pronto, agora ele manda os dois embora e a gente não sai mesmo.
Logo ele voltou e falou:
-São gente boa. Podem ir.
Desceu junto. Lá fora estavam os dois de branco da cabeça aos pés, um Passat branco TS que era o luxo da época.
E a gente ainda desconfiada até... Enrolaram meu pai... Só pode ser. Ainda achávamos que não chegaríamos ao baile. Até onde eles iriam com aquilo?
Entramos no carro e fomos embora.
Minha irmã sussurrava:
-Onde eles arrumaram esse carro?
Acho que assaltaram algum marinheiro pra pegar a roupa branca. Será que mataram alguém?
E a Márcia:
-Cala a boca menina!
Eu já estava em pânico, só conseguia rir sem parar. E me encolhia no banco traseiro. Olhem só a paranoia em que estávamos.
Próximo ao clube, o trânsito estava parado.
Ao tentarmos atravessar a avenida para estacionar na praia, vimos que o retorno estava interditado. Um guarda bem no meio da avenida gesticulou para recuarmos o carro. O esperto que dirigia o carro (até aí ainda não sabíamos o nome de nenhum dos dois), quis engatar a ré e em vez disso o carro pulou para frente e acertou as pernas do policial. Os dois desceram do carro e foram conversar com ele.
Ficamos apavoradas dentro do carro. E a Cely:
-“Tá” vendo! Isso foi de propósito, eu sabia!
Eles não vão levar a gente pra lugar nenhum, agora a gente “vai tudo em cana” bailar no xadrez.
-Duvido que eles tenham a “grana” pra pagar as entradas. Só se assaltaram um banco!
Vimos um deles dando tapinhas cordiais nas costas do policial e eles em seguida voltaram ao carro.
Viramos à direita e logo estacionamos.
Fomos até a entrada do clube e ainda lá nos olhávamos desconfiadas.
-É agora! “Cadê a grana?”
Um deles (o mais alto) tirou um maço enorme de notas do bolso, as maiores que corriam na época e foi colocando na mão do bilheteiro:
Uma, duas, três, quatro, cinco...
Até pagar as seis entradas! Nosso queixo caiu.
Quem achou me devolva que ainda estou a procurar por gentileza...

Entramos no clube.
A Cely logo encontrou o Toninho e a Márcia foi encontrar com o paquera dela também. A Shirley e eu reclamávamos:
-Vocês vão nos deixar sozinhas com eles???
-Estamos acompanhadas... Se virem, rsrsrs.
Olhei para a Shirley e ela para mim. Tudo entendido:
Sobrou para nós! Ai meu pai!
Mas aí aconteceu o inesperado...
O mais velho deles virou para nós e disse:
-Vou dar uma volta e já venho, só apareceu no fim da festa. De vez em quando eu o via pulando sozinho; copo de Whisky na mão; no meio do salão. O outro que agora já sabíamos o nome (já era hora) – Fernandes, ficou conversando com a Shirley e comigo a noite inteira, mais com ela que comigo, pois, sem um tostão, me entupi de água de coco e frutas que eram de graça a noite toda, de graça nada, eles pagaram e bem caro. O Fernandes contou a vida dele toda, do outro, ele não falou muito, mas ficamos sabendo que eram oficiais da Marinha Mercante. O “desaparecido” no salão era nada mais, nada menos que o “Querubim”.
-Como?
Qual é o nome dele?
-Querubim!
A Shirley e eu dizíamos que eles “não existiam”, onde já se viu, dois homens já não tão novinhos assim, pagar uma pequena fortuna para quatro jovens e manter o maior respeito!
O Querubim nos confidenciou que mais valia para ele o prazer de realizar um sonho, o nosso sonho, que era o que ele faria a uma filha dele, não mencionou se era pai. Que se sentia feliz em nos fazer feliz! Gente, acho que foi aí que encontrei meu mestre!
Baile terminado, eles nos deixaram em casa, ainda deram carona para o Toninho. Em casa ficamos a Márcia, a Cely e eu. A Shirley quis ir para a casa dela e no dia seguinte, conversando, ela falou que quando desceu do carro e se despediu, ao ver o carro virando a esquina, teve a sensação de que ele desapareceu em fumaça. Achou que se andasse até lá, veria as penas do Querubim esvoaçando no ar...
Nunca mais os vimos ou tivemos notícias deles. Só sabemos que eram cariocas.
Fernandes e Querubim...
Nossos anjinhos do Hawaii...

...Mas algo ainda me intriga... Que será que meu pai tanto conversou com eles?...

Um comentário:

analuiza disse...

Olá, adoro os pequenos milagres do cotidiano e este foi um deles, sãos as energias sutis que conspiraram a favor. Preciso encontrar um Querubim... Abraços.